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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS


TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS

Entrevista com

FÁBIO ULHOA COELHO

Advogado, Professor Titular de Direito Comercial da PUC/SP; Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP. Autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva


Carta Forense - Professor, podemos começar com o senhor conceituando o que é o título de crédito eletrônico?

Fábio Ulhoa Coelho - Para isso precisamos conceituar, antes, o que é o "meio eletrônico" ou o "suporte eletrônico". Trata-se de uma das alternativas de conservação de informações, assim como o papiro, a argila e a pedra foram no passado e o papel tem sido desde sua invenção pelos chineses e introdução na Europa na Idade Média. No suporte eletrônico, a informação é traduzida numa enorme sequência de sensibilização elétrica e falta de sensibilização elétrica nos filamentos de um chip. Fala-se em mundo digital exatamente em razão dessas duas variáveis: a sensibilização elétrica, que costuma ser representada pelo Zero (0) e a falta de sensibilização, representada pelo Um (1). Pois bem, no passado, desde sua invenção, o título de crédito teve por suporte o papel, isto é, todas as informações referentes à obrigação nele documentada, desde o valor do crédito até a assinatura dos co-obrigados, estavam registradas sempre por meio de impressão de tinta sobre um tecido vegetal. No título de crédito eletrônico, essas informações são registradas mediante uma sucessão de sensibilizações e falta de sensibilizações elétricas.

CF - Estes títulos são funcionalmente equivalentes aos elaborados em papel?

FUC - Quando começou a se disseminar o meio eletrônico como suporte para informações jurídicas isso, evidentemente, suscitou diversas discussões. A mais importante delas, claro, diz respeito à segurança jurídica que se poderia esperar do novo suporte. Estudos realizados pela Comissão da ONU especializada em direito comercial internacional, a UNCITRAL, acabaram indicando que o meio eletrônico cumpre as mesmas funções do meio papel; há, como formulado por estes estudos, uma equivalência funcional entre esses dois meios.

CF - Muito se questiona a questão da integridade do título. Qual seu posicionamento?

FUC - Em primeiro lugar, destaco que a discussão sobre a segurança do meio eletrônico acabou despertando a discussão sobre a segurança do meio papel. Estamos tão acostumados a acreditar nesse suporte que nos esquecemos que ele também pode ser adulterado. O papel, rigorosamente falando, não assegura a integridade do documento. Não é impossível, por exemplo, rasurar um cheque ou uma nota promissória. Acontece que o papel , uma vez adulterado, deixa pistas. A perícia técnica pode detectar que houve adulteração e, muitas vezes, até mesmo reconstruir o que constava do papel antes dela. Com o meio eletrônico é igual: adotadas certas tecnologias, hoje acessíveis a todos, se houver alguma alteração no conteúdo de certo arquivo eletrônico, isto deixará pistas que um perito pode detectar e, por vezes, desfazer. A única diferença é que as pistas da adulteração do papel são físicas e as do arquivo eletrônico são eletrônicas.

CF - Há argumentos contra o instituto em relação à assinatura, já que esta seria requisito essencial. O senhor acredita que a assinatura digital deve substituir a manuscrita?

FUC - Não há nenhuma dúvida quanto a isso. Aliás, a assinatura digital já substitui, hoje, a manuscrita nas operações de maior vulto, tanto no âmbito do sistema financeiro como no mercado de capitais. Note-se que a doutrina diferencia entre assinatura eletrônica e assinatura digital. A assinatura eletrônica é um termo amplo que se refere a qualquer tipo de identificação transmitida por meio eletrônico. A senha de conta do banco é uma assinatura eletrônica. Quando se fala em assinatura digital, estamos nos referindo à identificação de uma pessoa por meio eletrônico feita de modo bem específico, isto é, feito a partir de um algoritmo denominado criptografia assimétrica. Sem entrar em detalhes técnicos, trata-se de uma identificação passível de certificação por um conjunto de autoridades que compõem a chamada Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira, a ICP-Brasil.

CF - O ordenamento já disciplina este tema?

FUC - Aqueles estudos da agência da ONU sobre o suporte eletrônico dos documentos jurídicos resultaram na formulação de um princípio geral do direito. Este princípio é o da "equivalência funcional", também chamado de "princípio da não discriminação". Que diz este princípio? Diz que não se pode negar validade, eficácia ou executividade a nenhum documento só pela circunstância de ter por suporte o meio eletrônico. Vale dizer, se um contrato é válido em papel, ele também será válido em meio eletrônico; se é eficaz em papel, também o será no eletrônico; se pode ser executado em papel, também pode ser executado em meio eletrônico. Se alguma coisa o viciar, como algum defeito de consentimento ou incapacidade das partes, vai invalidá-lo tanto num como noutro suporte. Como o meio eletrônico cumpre as mesmas funções que o papel, não há porque discriminá-lo, exigindo-se dele requisitos de validade, condições de eficácia ou pressupostos de executibilidade diversos dos exigidos para o documento papelizado. Este é um princípio geral do direito. Ele serve para preencher a lacuna do nosso direito positivo relativamente aos títulos de crédito eletrônicos, na forma da Lei de Introdução ao Código Civil.

CF - Há legislação específica?

FUC - Sim. A ICP-Brasil está disciplinada na Medida Provisória nº 2.200-2, de agosto de 2001. Para quem quiser mais informações sobre o assunto, recomendo visitar o site do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, o ITI, que é a autarquia federal com a função de autoridade-raiz da ICP-Brasil.

CF - Como é a situação no Direito Comparado?

FUC - Ainda falando daqueles estudos da ONU, eles resultaram na elaboração de um modelo de lei sobre o assunto. A Lei-modelo da UNCITRAL sobre o comércio eletrônico. Este modelo foi incorporado ao direito interno de muitos países. Singapura em 1998, Estados Unidos, Austrália, Colômbia e Coréia do Sul em 1999, França, Reino Unido, Irlanda, Mauritânia, México, Filipinas, Índia, Eslovênia e Hong Kong em 2000, Jordânia, Panamá e Venezuela em 2001, República Dominicana, Equador, Nova Zelândia, Paquistão, África do Sul e Tailândia em 2002, China em 2004 e Sri Lanka em 2006 aprovaram leis tornando a equivalência funcional não mais um princípio geral, implícito, mas sim um princípio expresso na ordem jurídica interna. No Brasil, há vários projetos de lei no mesmo sentido, mas isso infelizmente não está na pauta de prioridades do Congresso.

CF - Como fica a questão dos institutos de Direito Cambiário, que dependem de suporte papelizado?

FUC - Claro que alguns institutos do direito cambiário estão intrinsecamente ligados à figura do papel e, por isso, quando empregado o meio eletrônico, eles devem passar necessariamente por revisão . As figuras do endosso em branco ou o título ao portador, por exemplo, não têm equivalentes quando o suporte do título é eletrônico.

CF - Qual o equívoco que é feito em relação ao artigo 889, §3º do Código Civil e os Títulos de Crédito Eletrônicos?

FUC - Este dispositivo por vezes é apresentado como fundamento legal para os títulos eletrônicos, mas, infelizmente, não tem este sentido. Nele, está dito que o título pode ser gerado por computador. Quer dizer, se eu digitar num arquivo Word todos os requisitos que a lei diz que uma nota promissória deve conter, imprimir esse arquivo num papel e colher a assinatura de quem é apontado como subscritor do título, então eu tenho a aplicação do art. 889, § 3º, do Código Civil. Mas aí, ainda estamos diante de um título de crédito papelizado. Em vez de preenchido à mão ou datilografado, foi gerado a partir do computador. Isso não é um título de crédito eletrônico.

CF - O Direito Cambiário possui três princípios basilares: Cartularidade, Literalidade e Autonomia. Como verifica a adequação deste instituto?

FUC - Temos três situações diferentes: um princípio desaparece, outro deve ser ajustado e o terceiro continua em pleno vigor. O princípio da cartularidade é o que perde todo o sentido, quando se trata de um título de crédito eletrônico. Não há nada que se possa assemelhar à posse do papel em relação ao arquivo eletrônico. Como, porém, o meio eletrônico facilita enormemente o arquivamento dos registros referentes à circulação do crédito, a cartularidade não faz falta. A literalidade deve ser adaptada. Em sua formulação original, afirma que só produzem efeitos cambiários o que consta do teor da cártula; agora, devemos ajustar seu enunciado no sentido de que só produzem efeitos cambiários o que constar do registro eletrônico atinente ao título. "O que não estiver no registro eletrônico, não está no mundo". Por fim, o princípio da autonomia continuaria sendo plenamente aplicável. Seja documentada em meio papel ou em meio eletrônico, a obrigação cambial circula sempre de forma independente e autônoma das anteriores.

CF - O que é o fenômeno da Transmutação de Suporte?

FUC - Trata-se do registro, num mercado de balcão organizado, como a Cetip ou a BBM, de um título de crédito criado num suporte papel. A transmutação de suporte importa que o crédito nele documentado passa, desde o registro, a circular exclusivamente por meio eletrônico. Quer dizer, o título de crédito deixa de ter o suporte papel e passa para o eletrônico. O pedaço de papel que, antes, materializava o título deixa de cumprir esta função. Nele não se pode lançar mais nenhum ato cambiário enquanto estiver ativo o registro deste título no mercado de balcão organizado. Se, na data do vencimento, o título for regularmente liquidado, ele não reassume o suporte anterior. Mas se não houver o pagamento e for necessária a cobrança judicial, deve ocorrer nova transmutação de suporte. Quer dizer, aquele papel que ficou custodiado no banco e que, até o vencimento do título, não tinha mais a função de documentar aquele crédito, volta a ser o suporte do título. Isto por enquanto. No futuro próximo, quando os processos judiciais forem todos eletrônicos, não será mais necessária a transmutação de suporte, podendo o título ser criado, circular e, não pago, ser cobrado exclusivamente no meio eletrônico. A lei já disciplina a transmutação de suporte nos títulos do agronegócio, por exemplo. Mas a mesma disciplina é aplicável a qualquer título de crédito, em razão do princípio da equivalência funcional.

CF - O senhor acredita que a disseminação do processo eletrônico irá estimular o uso do título de crédito eletrônico?

FUC - Não há a menor dúvida. Talvez alguns professores ou até mesmo doutrinadores não tenham ainda se dado conta da verdadeira revolução silenciosa que, há anos, acontece no setor da mobilização de crédito. Aqueles que tratam o direito cambial como se o título de crédito fosse ainda um documento cartular falam, hoje, de casos marginais na economia - negócios entre amigos ou familiares, agiotagem, contratos civis de menor valor, coisas assim. A grande massa dos créditos, hoje em dia, é constituída, circula e é liquidada mediante registros eletrônicos. É necessário revermos todo este capítulo do direito comercial, a começar pelo próprio conceito de título de crédito, que Vivante enunciou há quase um século e que se encontra, atualmente, ultrapassado. Título de crédito não é mais o "documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele contido"; mas, sim, o "documento, cartular ou eletrônico, que contempla cláusula cambial, pela qual os co-obrigados expressam a concordância com a circulação do crédito nele contido de modo independente e autônomo".


Matéria extraída do site:
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